Regurgito fossilizado revela espécie de réptil extinto
11/12/2025
(Foto: Reprodução) Regurgito fossilizado revela espécie de réptil extinto
Julio Lacerda
Essa é uma história nada comum, mas muito interessante. Imagine conseguir identificar uma nova espécie de animal a partir de algo regurgitado por um dinossauro a milhões de anos atrás?
O material que deu origem à essa descoberta é oriundo da "Formação Romualdo", uma unidade geológica que faz parte da Bacia do Araripe, localizada entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí. Área que se estende por toda a Chapada do Araripe
O chamado "regurgitólito", o vômito petrificado, estava no Museu Câmara Cascudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal. Os especialistas estimam que o material estivesse na coleção há pelo menos 40 anos.
Provavelmente ele é oriundo de coletas dos antigos professores vinculados ao setor de paleontologia da instituição ou produto de doação ao museu. A pesquisadora Aline Ghilardi do departamento de geologia da UFRN participou do estudo.
"Redescobrimos o espécime ao realizar um levantamento dos fósseis de peixes da região do Araripe que estavam depositados na coleção. Esse trabalho estava sendo conduzido pelo aluno de graduação em ciências biológicas William Bruno de Souza Almeida, cujo objetivo era identificar com mais precisão os materiais, incluindo as espécies de peixe representadas. Em determinado momento, ele encontrou dificuldade com alguns exemplares e me chamou para avaliá-los. Foi então que nos deparamos com esse espécime tão peculiar", explica Ghilardi.
Era só o começo de uma grande novidade. Diante da concreção, ou seja reunião de partes ou partículas formando um corpo sólido com os fósseis, os pesquisadores tentaram imaginar algo já visto que se assemelhasse na aparência.
O chamado "regurgitólito", o vômito petrificado, estava no Museu Câmara Cascudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal
Aline Ghilardi
Por coincidência a pesquisadora Aline Ghilardi tinha lido semanas antes um estudo descrevendo dentes de Pterodaustro, um gênero de pterossauro filtrador que viveu na Argentina.
"O fóssil que eu tinha em mãos era extremamente similar. Lembro-me de ficar ao mesmo tempo confusa e muito eufórica. Nenhum pterossauro filtrador havia sido encontrado na Bacia do Araripe antes, então, o que eu tinha em minhas mãos já era inédito", relata Ghilardi.
Ao analisar o material na lupa junto com os alunos, a professora da UFRN confirmou que se tratava de um animal que tinha dentes similares ao pterossauro argentino. No entanto, havia uma questão.
A idade das rochas da Bacia do Araripe era muito diferente da idade das rochas onde o Pterodaustro havia sido encontrando no país vizinho. Portanto, a equipe de pesquisa estava diante de uma nova espécie.
"Sabendo que tínhamos um pterossauro raro e inédito em mãos, decidimos que seria importante convidar alguns colegas especialistas em pterossauros para ajudar no estudo e descrição. Foi assim que Rubi Pêgas (MZUSP) e Borja Holgado (URCA) foram convidados para o trabalho. Quando eu mostrei o fóssil para eles pela primeira vez, lembro-me o quanto ficaram maravilhados com a descoberta e empolgados em contribuir com a descrição. Desde a descoberta do fóssil nas prateleiras do museu, em agosto de 2024, até a conclusão do estudo e envio para a revista, passaram-se cerca de 10 meses", detalha a paleontóloga.
O animal recebeu o nome de Bakiribu waridzá , denominação com base na língua do povo indígena Cariri, que habita a Chapada do Araripe. Bakiribu siginifica "pente" e waridzá, "boca". A escolha do nome contou com a orientação de Idiane Crudzá, uma das guardiãs da língua. Os pterossauros foram répteis voadores, os primeiros vertebrados a desenvolver voo ativo, muito antes das aves.
O Bakiribu viveu durante a primeira metade do Período Cretáceo, há cerca de 110 milhões de anos. Ele tinha o tamanho de uma gaivota, com não mais de 1 metro de envergadura das asas e a altura de um gato. Mas como o animal vomitado por um predador pôde ser estudado tanto tempo depois ?
Detalhe das mandíbulas preservadas de pterossauros
Aline Ghilardi
"Quando o material é expelido, ele sai recoberto por muco, o que ajuda a manter os restos unidos. O paleoambiente da Formação Romualdo era uma laguna de águas calmas, pouco oxigenadas e saturadas em carbonato de cálcio. Nesse contexto, o regurgito, logo após ser produzido, foi rapidamente coberto por uma lama calcária muito fina que precipitou sobre os restos, protegendo-os e, aos poucos, endureceu e mineralizou, formando a concreção. Com o passar do tempo, todo o pacote de sedimentos se transformou em rocha", detalha Aline Ghirlandi.
O Bakiribu tinha cerdas, dentes muito finos e alongados, articulados na base e posicionados muito próximos uns dos outros, formando uma espécie de pente ou peneira, algo bastante semelhante às barbatanas das baleias.
Esses dentes são frágeis demais para capturar presas grandes, como peixes. Eles funcionam bem apenas para a captura de organismos muito pequenos por meio de filtração, como pequenos crustáceos.
É possível chegar a essa conclusão observando a anatomia e o comportamento de animais atuais que apresentam estruturas semelhantes. Ele provavelmente se alimentava de pequenos crustáceos, larvas aquáticas, alevinos e outros organismos diminutos que viviam na água da laguna do Araripe durante o Cretáceo , último período da Era Mezozoica (145 milhões a 65 milhões de anos atrás).
Considerando os animais que viviam no paleoambiente da Bacia do Araripe naquele período, apenas dinossauros ou grandes pterossauros, como Tropeognathus, teriam porte e dieta compatíveis para consumir esse tipo e essa quantidade de presas.
"A descoberta de Bakiribu representa um avanço importante para a paleontologia brasileira ao revelar um tipo raro de pterossauro na Bacia do Araripe. Até então, não havia registros de pterossauros filtradores na região e isso amplia de forma significativa nossa compreensão sobre a diversidade e a complexidade ecológica daquele paleoambiente, além de fornecer um indício excepcional das relações tróficas no Cretáceo. Em escala global, Bakiribu também preenche uma lacuna geográfica na distribuição do seu grupo e ajuda a esclarecer aspectos da história evolutiva desses animais, já que apresenta características intermediárias entre linhagens mais antigas e mais recentes", pondera a pesquisadora.
"Para quem pesquisa no Araripe, a descoberta reforça que ainda há muito a ser encontrado por ali, já para quem trabalha com paleontologia de modo geral, nosso trabalho evidencia o quanto coleções científicas podem guardar informações inéditas que merecem ser revisitadas e reinterpretadas", completa.
Quem imaginaria que um desconforto estomacal pudesse relevar uma descoberta milhões de anos depois? Para a ciência, isso é possível.
VÍDEOS: Destaques Terra da Gente
Veja mais conteúdos sobre a natureza no Terra da Gente